Uma saga de morte e vida
“É a conta menor
que tiraste em vida.
(...)É a parte que te cabe
deste latifúndio.”
Em "Morte e Vida Severina",
João Cabral de Melo Neto narra com a força de sua poesia a saga de milhares de
nordestinos obrigados à migração constante na tentativa de sobreviver, de
permanecer vivos. A cova rasa é a parte que cabe ao retirante nordestino; é só
na morte que ele conquista um pedaço de chão, que desejou e buscou por toda sua
vida, em toda sua caminhada.
"Morte e Vida e Severina" é
um poema, uma narrativa poética, um auto de natal, como o próprio autor denomina
a obra, por seu caráter dramático, pela caracterização abstrata das
personagens, pela densidade do conteúdo expresso. A arquitetura da poesia, sua
sofisticação, está na simplicidade da linguagem aliada ao refinamento dos
versos, à construção das falas e às reflexões dos personagens. Auto de natal,
porque a história culmina com o anúncio do nascimento de uma criança:
“... não sabeis que vosso filho
saltou para dentro da vida?”(pág.
195)
Os vizinhos e amigos, apesar de sua
pobreza, homenageiam um a um o menino — mais um Severino —, à semelhança das
narrativas bíblicas sobre o nascimento de Jesus. São referidos também os
acontecimentos que marcam a viagem do retirante, lembrando a narração da Via
Sacra feita por Jesus Cristo.
Severino, o Retirante, que o autor
apresenta no início do auto é um indivíduo, mas representa também todos os
nordestinos, cuja vida e morte são marcadas pelo anonimato, pela miséria que se
estende a cada dia. Nesse poema, o leitor é conduzido a uma profunda reflexão
sobre a realidade social nordestina, sobre as principais tragédias vividas por
um povo obstinado, bravo, teimoso, que se agarra à vida.
A importância do rio, o valor da
crença e da oração, a solidariedade e as diferenças gritantes entre as classes
sociais são alguns dos temas que constituem a obra. Além disso, impressiona
também o fato de que, numa terra potencialmente tão rica e fértil, a morte seja
o meio para sustentar tantas vidas. Os trabalhos mencionados no poema estão
sempre estreitamente ligados à morte: os coveiros e a carpideira, por exemplo.
Nem por isso estão ausentes algumas alegrias, como o nascimento, que marcam a
vida desses homens e mulheres que vivem de forma, muitas vezes, subumana.
A vida e a morte são igualmente
tratadas. A vida é severina porque castiga o homem, porque exige dele aquilo
que ele não tem. A morte é severina porque, ao lhe tirar a vida, ainda é mais
generosa que ela: ao morrer, o homem ganha uma cova, um pedaço de terra que,
apesar do tamanho, é ainda maior do que aquilo que ele pôde conquistar em vida.
Homens, mulheres e crianças nordestinos brigam pela vida num solo árido, seco
escaldante, lamacento.
Ao final do poema, quando o retirante
questiona o valor dessa vida tão difícil, conquistada a tantas penas, com tanta
renúncia e sofrimento, o nascimento de uma criança acentua o paradoxo abordado
no auto – morte e vida:
E não há melhor resposta
Que o espetáculo da vida:
Vê-la desfiar seu fio,
(que também se chama vida),
ver a fábrica que ela mesma,
Teimosamente, se fabrica,
Vê-la brotar como há pouco
Em nova vida explodida;
Mesmo quando é assim pequena
A explosão, como a ocorrida;
Mesmo quando é uma explosão
Como a de pouco, franzina;
Mesmo quando é a explosão
De uma vida severina.
(pág.202)
A leitura da obra de João Cabral de
Melo Neto certamente deixará no leitor uma marca forte, seja pela profundidade
do tema que aborda, seja pela beleza e pela simplicidade da linguagem
materializada na sofisticação e na força dos versos construídos pelo autor.
fonte :http://www.educared.org
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